Platão: Metafísica Parte 2

“No último texto trabalhamos sobre a Teoria das Formas de Platão, isto é, sobre o pensamento metafísico do autor que esta presente em suas obras.
De fato, tal proposta filosófica tal como a apresentamos é mais do que suficiente para justificar os demais pensamentos que aparecem nos demais escritos.
Apesar disso, podemos levantar um problema dentro da própria Teoria das Formas que não aparece resolvido em nenhum dos diálogos do autor.
Para entendermos de que se trata esse problema, devemos entrar um pouco no modo grego de pensar.
Desde os pré socráticos, parece que todo o intento de explicar a realidade está sintetizado na busca por um princípio unificador.
De fato, todos eles tentaram explicar a multiplicidade do cosmos a partir de uma única Matéria Primordial em Estado Primordial, de modo que a expressão mais extrema dessa postura encontramos no eleatismo (filosofia de Parmenides e companhia).
O mesmo vemos na Filosofia Moral de Sócrates onde toda a vida ética do indivíduo era reduzidas à virtude enquanto ciência.
Assim, seguindo a visão de mundo de seu tempo, Platão também concebe a Teoria das Formas como uma maneira de unificar a multiplicidade da realidade, afinal, como já foi visto no último texto, o principal papel das Formas é o de unificar a multiplicidade das coisas sensíveis e singulares.
E aqui surge a dificuldade, pois Platão não fala de apenas uma única Forma, mas de uma multiplicidade delas.
Em outras palavras, Platão explica a pluralidade sensível com uma pluralidade inteligível.
O problema é que a Teoria das Formas não é capaz de resolver essa multiplicidade do Inteligível, de modo que faz falta algo capaz de explicar isso que, todavia, não está desenvolvido nos escritos do autor.

Tal situação, contudo, não significa que estamos estagnados, afinal, podemos contar a a Tradição Indireta e com algumas pistas que o filósofo vai deixando em suas obras.
Mesmo que ele não tenha querido colocar por escritos as “coisas de maior valor”, o fato é que pelo menos as estava pressupondo quando escreveu.
Fédon.jpgNo próprio Fédon temos uma indicação claríssima de que poderia existir algo além da Teoria das Formas.
Quando Platão retrata Sócrates falando sobre as Formas, às apresenta como um postulado, quer dizer, algo que Sócrates estabelece como verdadeiro e que serve de critério para saber o que é correto (aquilo que está de acordo com o postulado) e o que é errado (aquilo que não está em acordo com o postulado).
O que acontece é que em determinado momento do Fédon, Sócrates vai dizer aos que estavam presente como deve funcionar isso de pensar por postulados.
Além de examinar todas as consequências que decorrem dele, é preciso em seguida buscar um outro postulado que o justifique, quer dizer, que o fundamente.
Assim, o seguinte postulado deve ser arduamente examinado e mais uma vez se deve buscar outro que o justifique, de modo que tal processo se repete até que se alcance o que podemos chamar de “Postulado Supremo”, isto é, um postulado que não tem necessidade de outro que o justifique.
Também na República vemos Platão falar, através de Sócrates, desse “Postulado Supremo” como o que está acima de todos os demais postulados e funciona como o vértice ao qual todos ele convergem.
Isso é interessante, pois parece bastante com o método dialético de Teses e Críticas que propunha Sócrates em seu exame.
A dificuldade, todavia, vem do fato de que Platão não desenvolve em seus escritos esse tema, de modo que não temos muitos dados sobre o que seria o “Postulado Supremo”.
Entretanto, a Tradição Indireta nos dá mais ou menos uma idéia sobre o que tinha Platão em mente ao falar essas coisas.
Segundo ela, o filósofo considerava que acima das Formas estavam os Princípios Supremos, quer dizer, as “coisas de maior valor”.
Baseados nisso, me parece razoável pensar que somente tais Princípios Supremos possam ser tais que, uma vez atingidos, excluam a necessidade de uma justificação ulterior.
Será então no conjunto das Doutrinas Não Escritas sobre os Princípios Supremos que encontraremos informações sobre o que parece ser o cume e o fim da metafísica platônica que fundamentará sua Teoria das Formas.

Aristoteles e Sexto Empírico são alguns dos filósofos que, ao comentar Platão, indicam que os Princípios Supremos são o Uno e a Díade.
Esse segundo princípio, chamado Díade, pode ser um pouco mais difícil de entender, de modo que as próximas linhas serão um pouco complicadas, porem, uma vez que o entendamos bem, o papel do Uno fica mais claro.
[Sendo assim, vamos com calma… e Coragem!!!]
Coragem.jpg
Grande e Pequeno.jpgAristoteles quando fala dela a chama de Grande-e-Pequeno, mas isso devemos entender como infinita grandeza e infinita pequenez, afinal, falar de grande e pequeno poderia acabar sendo algo demasiado palpável e só nos confundiria.
Em outras palavras, podemos entender a Díade como tendência ao infinitamente grande e ao infinitamente pequeno ao mesmo tempo, de modo que disso entendemos que ela é Ilimitada.
Além disso, Sexto Empírico vai referir-se a ela como a Dualidade Indeterminada pela qual todas as dualidades determinadas são dualidades.
Parece algo estranho de se dizer, mas tem sua razão.
Em primeiro lugar temos que agora, além de Ilimitado, esse princípio também é Indeterminado.
Depois, para facilitar, vamos ler a palavrinha “Dualidade” como “Multiplicidade”, pois além de nesse contexto significarem a mesma coisa, é com o segundo termo que viemos trabalhando desde que começamos com Platão.
Se assim o fizermos, temos então que a Díade é a Multiplicidade Indeterminada pela qual todas as multiplicidades determinadas (inclusive as Formas em seu conjunto) podem ser chamadas de multiplicidade.
Em resumo, vamos dar para a Díade o seguinte apelido: Princípio (ou Motivo) Indeterminado e Ilimitado de Multiplicidade.
Agora, quando falamos de Multiplicidade, devemos devemos agregar ainda outros três termos que têm muito que ver com esse conceito, são eles: pluralidade, diferença, gradação.
Sendo assim, a Díade será o Princípio Indeterminado e Ilimitado que explica o porquê das coisas (e também das Formas) serem plurais (há várias), diferentes (não são todas iguais) e gradativas (há uma hierarquia).

Uno.pngO Uno, por sua vez, atua justamente como um polo oposto à Díade, quer dizer, como um Princípio de Unidade Determinante e Limitante.
Em Metafísica, a ação do Determinante no Indeterminado faz surgir o Determinado, e a ação no Limitante no Ilimitado faz surgir o Limitado (algo que mais ou menos já havíamos visto nos pré-socráticos).
Com isso, o Uno atua sobre a Díade de modo que, na medida em que a determina e a limita, faz nascer múltiplas realidades determinadas e limitadas.
Ora, falar de algo determinado e limitado permite que eu o entenda como Unidade, de modo que o que teremos serão Unidades Múltiplas (pois se fala de várias dessas unidades que são diferentes e estão hierarquicamente organizadas).
Assim, as Formas que derivam na ação do Uno sobre a Díade podem ser consideradas justamente como Unidades Múltiplas e, cada um delas, como uma síntese de unidade e multiplicidade.
Ao fim, parece correto afirmar que Platão entende toda a realidade (incluso o Ser, mas disso falamos depois) como uma derivação da “mescla” dês dois Princípios Supremos, porem, essa última informação pede algum matizes.

Quando falamos de “mescla” e de “dois” Princípios podemos cair no erro comum de pensar no Uno e na Díade como realidade independentes e separadas que um dia se juntam e “VRAU”: aparecem as Formas!!!
A primeira coisa que devemos ter em mente é que não existe a menor possibilidade de separação entre Uno e Díade, pois um Princípio depende estruturalmente do outro.
No último texto, falávamos algo parecido sobre a relação entre Inteligível e sensível, quer dizer, que não existia dualismo (separação), mas dualidade.
Bipolar.jpg
Pois bem, no caso do Uno e da Díade nem de dualidade podemos falar, mas de algo que poderíamos chamar de “bipolarismo” (mas não tipo esse lance que se vê em psicologia).
Veja bem, entre os gregos antigos parece que podemos falar de algo chamado “forma polar de pensamento”, quer dizer, uma modo de ver o mundo como pares de contrários que está na base de toda a produção espiritual grega.
Alguns exemplos encontraríamos na própria mitologia grega onde as forças cósmicas do princípio são divididas em duas esferas representadas por Caos (amorfo) e Gaia (forma) ou no fato de que cada divindade possui em si mesma um misto de forças polarmente opostas (Artemis é ao mesmo tempo virgem e a protetora das mulheres que dão à luz) e um outro deus ao qual está polarmente contraposta (Dionísio e Apolo).
Baseando-se nisso, a pesquisadora Paula Philippson afirma que essa estrutura é o modo geral de pensar de todo homem grego e tira ainda algumas conclusões interessantes para o tema que estamos tratando.
Segundo a especialista, na “forma polar de pensamento” os contrários não são somente indissolúveis, mas também logicamente condicionados pela oposição que existe entre eles, de modo que se deixássemos de lado um dos polos, o outro perderia seu próprio sentido.
Com isso em mente, entendemos que a relação “bipolarista” do Uno e da Díade não permite que pensamos que se tratam de “duas” realidades separadas que simplesmente “se mesclam”, mas de Princípios da realidade mutuamente condicionados que se separados perdem totalmente o sentido.
De certa forma, poderíamos dizer que com sua Teoria dos Princípios, Platão seja talvez o mais elevado representante do modo típico de pensar dos gregos.
Com o que então já foi dito até agora sobre os Princípios Supremos de Platão, penso que podemos dar mais alguns passos.

Já sabemos que deles derivam as Formas, porem não somente.
Em primeiro lugar, existe realidades muito próximas das Formas que também derivam da ação do Uno sobre a Díade, são elas os Números Ideias sobre os quais logo falaremos.
Depois, parece que Platão não utiliza os Princípios Supremos para explicar somente o Inteligível, mas também a realidade como um todo.
Segundo a Tradição Indireta, o filósofo categoriza o real partindo de que todas as coisas devem remeter ao Uno e à Díade.
E isso veremos melhor agora…

Para o autor, podemos dividir o real em dois grupos de seres: aqueles que são por si e aquele que estão sempre em relação com outro.
Esse último grupo, por sua vez, se subdivide em dois: “Opostos Contrários” e “Correlativos”.
Ao fim, temos 3 grupos de seres e cada um desses grupos terá um modo de referir-se aos Princípios.
Antes porem que digamos como isso funciona, algo deve ficar claro desde já.
Em todos os seres está sempre a atuação dos dois Princípios, de modo que mesmo que digamos que um grupo está baixo determinado Princípio, isso não significa não depende em nada do outro, mas somente que prevalece aquele e não este.
Voltando então aos grupos de seres, temos o seguinte:
“Por Si mesmos” – Prevalece o Uno
“Contrários Opostos” – Em alguns prevalece o Uno e em outros a Díade.
“Correlativos” – Prevalece a Díade
O grupo dos “Por Si mesmos”, por prevalecer neles a ação do Uno, estão constituídos de todos os seres que são totalmente definidos e determinados, quer dizer, que são cada um deles uma unidade estruturalmente independente da outra.
Dizemos então que estão baixo o género na “Unidade”.
Exemplos seriam homem, cachorro, água, árvore, tira etc.
Cada um dos seres citados é totalmente independente, quer dizer não possuem nenhum outro ser com o qual estão sempre em relação.
Isso, entretanto, não é assim nos seguintes grupos.
Se o primeiro grupo está composto de unidades determinadas, esses outros dois estão compostos de pares de seres que dizem respeito um ao outro, porem tendo essa mutua relação marcada por algumas características específicas de cada um dos grupos.
O que chamamos de “Contrários Opostos” são tais que os elementos de cada um dos pares desse grupo não podem nem existir nem deixar de existir simultaneamente, quer dizer, o desaparecimento de um implica necessariamente o produzir-se do outro.
Exemplos seriam pares como Igual-e-Desigual, Morte-e-Vida, Imóvel-e-Movido etc.
Por outro lado, com o “Correlativos” é diferente, pois são marcados pelo fato de que necessariamente produzem-se juntos e desaparecem juntos, quer dizer, falar de um deles é necessariamente considerar o outro.
Exemplos desse grupo seriam pares como Grande-e-Pequeno; Alto-e-Baixo; Direito-e-Esquerdo etc.
É ainda interessante observarmos que Platão está chamando essas realidades de seres, afinal, não é bem assim que pensamos hoje em dia.
Pois bem, os pares do grupo dos “Contrários Opostos” estão baixo o género no “Igual-e-Desigual”.
Vemos então que um dos pares do qual o grupo está constituído (Igual-e-Desigual) dá nome a todo o género, algo que pode causar confusão, mas que é mais comum do que se imagina (por exemplo o fato de “homem” ser o nome genérico do conjunto de homens e mulheres).
Esse género possui dois nomes pelo fato de que cada um diz respeito a um elemento do par, de modo que em todos os pares de “Contrários Opostos” haverá um elemento que diz respeito ao “Igual” e outro ao “Desigual”.
O critério para saber a que coluna pertence cada elemento é se ele está ou não submetido ao “mais-ou-menos”, de modo que os que assim estiverem estão da série dos “Desiguais” e os que não na dos “Iguais”.
Por exemplo, aquilo que é “Imóvel” não pode ser “mais-ou-menos” imóvel, quer dizer, é sempre igualmente imóvel.
Já o “Movido” aceita essa gradação de “mais-ou-menos”, afinal pode haver a desigualdade de ser mais movido agora e menos movido depois.
Como o Uno é a melhor representação do que é sempre igual, se pode concluir que nos que estão baixo o género do “Igual” prevalece o Uno.
O “Desigual”, por sua vez, na medida em que implica “mais-ou-menos”, também supõe o Defeito e o Excesso, quer dizer, a Indeterminação, de modo que nos elementos que estão baixo o género do “Desigual” prevalece a Díade.
Por último, temos o grupo dos “Correlativos”, onde prevalece sempre a Díade.
Pelo fato da relação entre os pares desse grupo ser totalmente carente de uma definição estrutural, temos que todos os elementos do grupo estão submetidos ao “mais-ou-menos”, quer dizer, podem crescer ou decrescer independentemente um do outro.
Isso significa que todos os elementos estão baixo o género do “Desigual”, quer dizer, do Defeito e do Excesso, de maneira que prevalece em cada um deles a Díade.
Devemos levar ainda em conta sobre essa divisão que Platão faz da realidade não está fundamentada somente ema distinções lógicas e abstratas, mas no próprio Ser das coisas, ou melhor, no conhecimento acerca da estrutura do Ser.
Além dessa proposta de categorização do real ajudar a esclarecer algo sobre o que falamos dobre os Princípios, também será um dos fundamentos e inspirações aos quais Aristoteles buscaria para desenvolver sua própria doutrina de Categorias.

Além de utilizar os Princípios Supremos para explicar as Formas e as categorias da realidade, Platão também os utilizaria para falar do que já anunciamos como “Números Ideais”.
Antes de mais nada, devemos ter em mente que não estaremos nos referindo aos números matemáticos (2, 3, 4 etc), mas aos Números Metafísicos, quer dizer, a causa e fundamento dos próprios números matemáticos.
Assim, quando nos referirmos aos “Números Ideais”, simplesmente vamos dizer Números (começando com letra maiúscula).
Outro problema na doutrina platônica sobre os Números é que existe uma redução das Formas aos Números que, por nem sempre é bem entendida, pede que expliquemos um pouco sobre a relação que existe entre Números e Formas.
Em primeira lugar, a relação que Platão admite entre essas duas realidades não tem nada a ver com aquela “mística numérica” dos pitagóricos que identificava cada coisa da realidade com um número específico.
Numerologia.jpgPara, contudo entendermos como verdadeiramente se dava essa relação, devemos entrar um pouco na cabeça do homem grego daquela época.
Para o típico cidadão grego, os números são, antes de mais nada, pensados como relações de grandeza ou frações de grandezas, quer dizer, como proporção.
Nesse sentido, é extremamente comum olhar para relações e traduzi-las por estruturas numéricas ou proporções.
Homo Quadratus.jpgExemplo disso seriam os famosos cânones gregos no que dizia respeito à produção artística, sendo sem dúvida um dos mais famosos o chamado Homo Quadratus (que ganha fama com Leonardo Da Vinci).
Enfim, o fato é que os gregos eram capazes para olhar para obras de artes plástica e enxergar em suas figuras e formatos uma série de relações numéricas e proporções que para o homem moderno talvez imperceptível (a menos que o sujeito estude arte, mas ai não vale).
Ora, tal como isso modo de ver as coisas funcionava para as figuras e formatos das coisas sensíveis, não é de se estranhar que Platão, ao pensar nas Formas, também concluísse que por detrás delas existiria algo parecido.
De fato, se pensarmos que existe um Multiplicidade de Formas, isso supõe que elas são muitas, diferentes e hierarquicamente organizadas.
Essa hierarquia das Formas pode ser entendida como a “posição” de uma Forma em relação à outra segundo sua maior ou menor Universalidade e a maneira mais ou menos complexa pela qual se relaciona com as demais Formas.
Nesse sentido, falamos que entre as Formas existe como que um “trama de relações”.
Ora, se os gregos antigos (e ai está incluído Platão) entendia os número como relação e proporção, é quase óbvio que o autor tentaria traduzir a “trama de relações” das Formas por uma relação numérica.
Assim, isso que chamam de “redução” das Formas à Números não é nada mais do que outra elevada expressão do espírito grego com a qual nos brinda Platão em suas Doutrinas-Não-Escritas.
Outro ponto interessante é que segundo muitos estudiosos, os Números representariam de maneira paradigmática a estrutura sintética de Unidade-na-Multiplicidade, afinal, mais do que qualquer Forma ou coisa singular, eles derivam de uma limitação (ação do Uno) sobre uma multiplicidade ilimitada de grande-e-pequeno (Díade), motivo pelo qual se afirma que ele foram os primeiros gerados e que a realidade possui uma estrutura numérica.
Por último, no que diz respeito aos números em Platão, vejamos brevemente em que consistem os números matemáticos, pois, ainda que não estejam equiparados às Formas tais como os Número Metafísicos, tão pouco podem ser considerados como realidades sensíveis.
Basicamente, o filósofo diz que os número matemático (este com os quais trabalhamos na escola) estão numa situação intermediária entre sensível e Inteligível.
Isso, incluso, testemunha o Aristóteles.
O que acontece é ao mesmo tempo em que eles são eternos e imóveis (algo que os aproxima das Formas) também múltiplos segundo a mesma espécie (algo típico das coisas singulares).
Pluralidade de números.pngAssim, difere da realidade sensível por claramente serem inteligíveis, porem também diferem da realidade das Formas e dos Números Metafísicos pelo fato de que as operações aritméticas implicas o uso de muitos números iguais.
Se então quisermos falar isso com um vocabulário mais rebuscado, podemos falar de entes sensíveis (coisas singulares), entes inteligíveis (Formas e Números Metafísicos) e entes matemáticos (realidades intermediárias entre o sensível e o inteligível).
Essa situação intermediária dos chamados entes matemático justifica o porquê de, na proposta pedagógica de Platão, o autor ter a matemática como uma preparação para a Dialética (que é propriamente o conhecimento sobre as realidades inteligíveis), pois seria um nível de conhecimento justamente intermediários entre este e o o conhecimento sensível.
Ao fim, temos que Platão não pretendia matematizar a Metafísica, mas fundamentar metafisicamente a matemática.
E com isso parece que já falamos o suficiente sobre a Teoria dos Princípios de Platão.
Admito que não se trata de um tema fácil e, talvez, você não entenda tudo numa primeira leitura.
Isso, contudo, não é um problema, afinal, é de Platão que estamos falando.
Para então finalizarmos esse texto, vou deixar uma solução interessante que a Teoria dos Princípio apresenta para uma das passagens mais misteriosas e belas das obras de Platão.
Muitas delas estão consignadas naquele livro que pode ser considerado a “Grande Obra” do autor, isto é, a República.
[Mais pra frente vamos falar mais sobre essa obra, de modo que não vou explicar nesse texto todo o seu contexto.
Vale, porem, frisar que toda essa obra é como um paradigma da relação entre escrita e oralidade, afinal, muitas vezes vemos que Platão nem afirma nem oculta seu pensamento, mas o fala por meio de alusões, imagens e analogias.
Isso é interessante pois mostra que, por mais que ele evite escrever sobre as “coisas de maior valor”, é simplesmente impossível que fale de filosofia sem pelo menos as estar supondo]
Ao fim de sua defesa à Justiça (sim, nessa obra o autor terá que defender a noção da Justiça como algo bom mediante alguns ataques que ela recebeu), o autor afirma que para compreender a fundo a natureza dessa virtude seria necessário alcançar a verdadeira “justa medida”, algo que podemos entender como uma “Medida Suprema”.
Todavia, para alcançar a “Medida Suprema”, faz falta alcançar um tal “Conhecimento Máximo” que ele diz ser o conhecimento sobre a “Idéia (ou Forma) do Bem” que seria o que faz com que todas as virtudes (incluindo a Justiça) sejam úteis e proveitosas ao homem.
Nesse momento, o que o leito esperaria é que o autor fosse definir o que é o Bem por si e em si, porem ele não faz isso.
A primeira desculpa que o autor dá pra não fazer isso é colocar na boca de Sócrates que seus interlocutores já haviam escutado diversas vezes seu pensamento sobre esse assunto.
O problema é que se Platão não falasse nada sobre isso, o seu texto acabaria ficando sem sentido e coesão, afinal, parece que a “Ideia do Bem” está no núcleo da filosofia que o autor apresenta na República.
Dessa maneira, a solução do filosofo é prometer que falaria propriamente do Bem em outra e ocasião e que, naquele momento, falaria do “Filho” do Bem.
Obviamente Platão está introduzindo aqui uma analogia, afinal, sendo “Filho” do Bem, a realidade da qual o autor falaria deve ter algumas características herdadas de seu “Pai”.
Ora, o imagem que Platão utiliza para falar do “Filho” do Bem é o Sol, de modo que a analogia consiste entender que aquilo que o Sol era para o sensível (obviamente segundo o entendimento da época) deveria ser o Bem para o Inteligível.
Vejamos essa analogia:
A faculdade do homem de Ver (a visão) corresponde perfeitamente ao Ser visível (um outro termo seria visibilidade, mas não estou seguro se posso usar) das coisas.
Ora, a visão e o visível estão unidos pelo vínculo que se chama luz da qual a fonte é o Sol.
Dessa forma, a vista, ainda que não seja da mesma natureza do Sol recebe dele sua própria capacidade e, quando busca ver as coisas sem a presença do Sol (na escuridão) vê pouco ou quase nada.
Além disso, pelo fato da visão receber do Sol a capacidade de ver, é capaz de ver o próprio Sol (ainda que arda o olho).
Por último, o Sol não só é responsável pelo ver e ser visto, mas também pela geração, crescimento e nutrição das coisas (ideia tipicamente grega) ainda que não faça diretamente parte desse processo.
Essa relação entre Sol e visão pode ser analogamente entendida como a relação entre inteligência e Bem:
-assim como o Sol permite o ver e o ser visto, o Bem confere a verdade das coisas e permite que a inteligência conheça essa verdade;
-assim como o Sol pode ser visto, podemos também conhecer o Bem;
-assim como o Sol não é nem a visão nem a “visibilidade”, o Bem não é nem a inteligência nem a verdade;
-assim como o Sol está acima da vista e do ser visível, o Bem está acima da inteligência e da verdade;
-assim como o Sol da geração, da nutrição e do crescimento das coisas, o Bem é a causa do Ser e da essência delas, de modo que é superior tanto ao Ser quanto à essência.
Infelizmente o autor não apresenta muito mais analogias, afinal, tal como já foi dito, não parecer ter interesse de escrever sobre o Bem em si e por si.
Ao fim, Platão simplesmente apenas fala coisas sobre o Bem, mas não se preocupa em as fundamentar, quer dizer, em dar os motivos pelos quais, por exemplo, o Bem é causa do Ser e está acima dele (e olha que, em nível metafísico, falar de algo acima do Ser é forte pra caramba).
Assim, sem as Doutrinas Não Escritas simplesmente ficaríamos por aqui.
Como porem, segundo o itinerário que estamos fazendo podemos contar com elas, vamos seguir mais um pouquinho.
Parece que uma identificação do Bem com o Uno poderia explicar os porquês das afirmações de Platão, afinal, ainda que seja escassas as afirmações sobre essa identificação na Tradição Indireta, Proclo fala que o Uno de Platão é “Melius Ente” (melhor que o Ser).
O que acontece é que parece que na própria República o autor faz essa identificação, porem mais uma vez por meio de uma sutil alusão.
Apolo.jpg

Ao Fim desse discurso, Platão coloca na boca de Gláucon a seguinte frase: “Apolo! Que maravilhosa superioridade!”
Não seria errado interpretar que se trata de Platão fazendo um ato de louvor ao Sol, afinal, Apolo era um deus que tinha como carruagem o próprio Sol, porem, há algo mais a considerar.

Os pitagóricos (que Platão já havia frequentado quando escreveu a República) utilizavam justamente o nome do deus Apolo para referir-se ao Uno dele, afinal, se juntarmos a (α), que é uma partícula de negação, com polón (πολλóν), que significa muitos, temos justamente o termo “não-muitos”, ou seja, Uno. Nesse sentido, é razoável afirmar não só que Platão nos diz o nome da “Idéia do Bem”, como também que, dada a concordância entre esse nome e o testemunho da Tradição Indireta, este é uma instrumento confiável para nos aproximar das Doutrinas Não Escritas do Autor.”

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993

Platão: Metafísica Parte 1

“De duas maneira se compreendeu e expôs a filosofia de Platão.
Por um lado, alguns preferiram tentar sistematizar sua obra a partir de alguns esquemas antigos que prevaleceram ao longo da História da Filosofia (Aristoteles, por exemplo).
Por outro lado, supondo já uma cronologia dos diálogos de Platão e a existência de uma evolução de seu pensamento, outros especialistas preferiram trabalhar cada diálogo separadamente.
As duas tentativas geraram problemas, pois, se a primeira faz com que muitas partes da obra tenham que ser ignoradas em prol da construção de um sistema, a segunda tende a ser muito dispersiva e não dificulta entender Platão em sua totalidade.
Por conta desses problemas, Reale propõe uma terceira via de estudo, onde se pretende recuperar o sistema platônico não como uma estrutura de pensamento fechada, mas como um todo orgânico onde vários conceitos e ideias são reunidos e unificados em torno de um conceito supremo.
Ademais disso, Reale também percebe que Platão foi sendo lido a partir de três perspectivas: metafísica (Academia), religiosa (neoplatonismo) e política (século XX).
Assim, a solução do autor é propor que o verdadeiro Platão não se encontra em nenhuma dessas faces individualmente, mas sim nas junção das três em torno das Doutrinas Não Escritas.
Dessa forma, o que faremos ao longo das próximas semanas é ir apresentando as três componentes do pensamento de Platão e, na medida que pareça conveniente, mostrar a relação que possivelmente possuem com as “coisas de maior valor”.
Em esse texto começaremos a tratar da componente Metafísica de seu pensamento.

Falar da Metafísica de Platão é necessariamente tocar no que chamamos de Segunda Navegação, porem, antes de chegarmos nisso, há um itinerário que vale a pena conhecermos.
Num primeiro momento temos um Platão que se encontra com a doutrina dos pré socráticos sobre a causa por trás da geração, da corrupção e do ser das coisas, problemas esses que são os mais importante do que poderíamos chamar de Metafísica (ainda que não estivesse assim formulada) nesse momento.
O problema é que Platão percebe que as soluções dadas até então para essas questões eram de caráter puramente físico, algo que ele achou insatisfatório.
Ainda com os pré socráticos, temos o encontro com a teoria da Inteligência Cósmica de Anaxágoras como um possível solução para esse problemas.
Platão concorda com esse autor de que a Inteligência é a causa de tudo, porem percebe que ele não foi capaz de justificar isso adequadamente.
Basicamente, Anaxágoras afirma uma Inteligência que é causa e ordenadora de tudo, algo que supõe afirmar que ela atua dispondo todas as coisas da melhor maneira possível.
Quando Platão escuta isso, ele espera que Anaxagoras articule estruturalmente a Inteligência com a noção de Bem, afinal, seria esse o critério pelo qual a Inteligência ordenaria as coisas (para alcançar o “mais Bem”, o melhor).
Dessa maneira, a noção de Bem seria a condição do nascer e perecer das coisas, ou seja, de todos os fenômenos.
O que acontece é que, mesmo introduzindo a noção de Inteligência, Anaxágoras acaba atribuindo o papel de causa para explicar os fenômenos do cosmos aos próprios elementos físicos (água, fogo, terra, ar etc).
Para Platão isso era absurdo, pois ainda que os elementos físicos sejam necessários para a constituição do cosmos, atuariam mais como uma condição do que como a Causa Verdadeira.
super-copVeja um exemplo:
Digamos que em uma situação de vida ou morte um policial atira em um bandido.
Seria ridículo dizer que a causa do policial ter dado o tiro foi o seu dedo que puxou o gatilho.
Na verdade, o mais coerente seria afirmar que a verdadeira causa foi a inteligência do policial que percebeu que naquela determinada situação a melhor coisa a fazer era disparar.
A conclusão é a seguinte: o dedo que puxa o gatilho, bem como toda mecânica corporal envolvida nesse ato, é sim uma condição para a ação, mas não sua verdadeira causa.
Ao fim, o que Platão percebe é que a reflexão sobre a mecânica do cosmos, ou seja, considerando só a realidade física, não é suficiente para levar ao conhecimento da Causa Verdadeira, de maneira que terá que sair do plano sensível e entrar no que tradicionalmente será chamado de supra-sensível, ou, dimensão inteligível da realidade.
Com efeito, isso será propriamente a Segunda Navegação.
Obviamente, quando Platão fala isso no Fédon, está fazendo uma metáfora.
Originalmente, Segunda Navegação é um termo naval que designa a navegação feita com a força dos remos quando não há ventos para empurrar as velas.
Platão, sendo um sujeito muito culto, percebeu aqui a possibilidade de explicar a situação de seu pensamento em relação ao pensamento dos pré socráticos.
Com o método da filosofia anterior, ou seja, com os sentidos e as sensações, Platão realizou uma Primeira Navegação na busca pelas Causas Verdadeiras.
Uma vez que ele não encontrou nessa metodologia algo que pudesse chamar de Causa
Verdadeira, ele simplesmente conclui que com os ventos do método pré socrático não poderia seguir sua busca.
segunda-navegacaoAssim, o autor diz que fará uma Segunda Navegação no sentido de que buscará outro método que o permita seguir sua jornada, ainda que se torne algo muito mais árduo e cansativo (afinal, é mais fácil navegar sendo empurrado pelo vento do que remando que nem escravo).
Esse método não deve fundar-se nos sentidos (que já se mostraram insuficientes), mas nos pensamentos e postulados.
A partir disso o autor poderá sair do âmbito físico e adentrar na dimensão supra-sensível da realidade.Em suma, o que chamamos de Segunda Navegação é o descobrimento de Platão das realidades inteligíveis que ele considerará como as Causas Verdadeiras, de modo que as coisas físicas não serão mais que meio pelos quais essas Causas se realizam.Uma vez explicado isso, podemos finalmente entrar no verdadeiro assunto do texto de hoje, a saber, a Metafísica de Platão.

Propriamente, a Metafísica Platônica é a Teoria das Ideias e a Teoria dos Princípios.
Talvez você já tenha ouvido falar da primeira, mas dificilmente escutou algo sobre a segunda.
O que acontece é que a Teoria das Ideias de Platão é a parte de sua Metafísica que está exposta de maneira clara em suas obras, enquanto que a Teoria dos Princípios se encontra naquilo que chamamos de Doutrinas Não Escritas.
Sendo assim, vamos nos centrar primeiro na Teoria das Ideias.
[Um Breve Esclarecimento]
Mesmo que popularmente seja conhecida assim, o mais correto seria falar de uma Teoria das Formas.
O problema, como na maioria das vezes, está nas traduções do grego para as demais línguas.
Ideia é a tradução das palavras gregas Idéa e Eidos.
Ainda que pareça quase uma transliteração, o fato é que o conceito de Ideia que temos hoje (pensamento, representação mental etc) é totalmente diferente do que Platão queria dizer quando falava de Idéa ou Eidos.
Melancolia.jpgPor exemplo, outro dia eu estava em casa melancólico porque sabia que ia pra longe e não poderia mais estar ajudando no Curso de Férias.Dai, enquanto estava sentado no sofá olhando pro ventilador, tive uma ideia para poder continuar envolvido com esse trabalho – “Vou fazer um Blog para explicar coisas que não conseguimos explicar nas aulas” – pois bem, obviamente não é desse tipo de ideia que o filósofo estava tratando.
Além disso, Idéa e Eidos são palavras que vêm do verbo grego Idein, que significa “ver”, de modo que originalmente (antes de Platão) eram utilizados para falar da forma visível das coisas.
Platão, entretanto, justamente por conta da Segunda Navegação, utiliza esses termos para referir-se ao que chamamos de Forma Interior da Coisa, quer dizer, sua estrutura metafísica puramente inteligível.
Se então os olhos são capazes de captar as Formas físicas, a Inteligência dará conta das Formas Inteligíveis.
Assim, a partir de agora eu vou abandonar o termo ideia e utilizar apenas o termo Forma.
[Finalmente, a Teoria das Formas]

A obra que normalmente se utiliza como referência para conhecer a Teoria das Formas de Platão é o Fédon, porem, em praticamente todas as outras obras, incluso as ditas obras da juventude, poderemos encontrar algo disso pelo menos de modo implícito.
Vejamos então algumas características disso que Platão chama de Formas:
a) Inteligibilidade: quer dizer que as Formas só podem ser captada pelo raciocínio, de modo que por isso que as chamamos de Formas Inteligíveis.
Em esto sentido, as Formas Inteligíveis são contrapostas às coisas sensíveis como se fossem uma outra dimensão da mesma realidade que só pode ser alcançada pela inteligência.
Com isso, vemos pela primeira vez na História da Filosofia a distinção clara entre plano metafísico e plano físico, algo que em muitos manuais utilizados em nossas escolas aparece como a distinção entre Mundo Sensível e Mundo Inteligível.
Particularmente não me parece apropriado essa terminologia de mundos, afinal, pode dar a entender que Platão esteja supondo que existe uma espécie de “mundo paralelo” onde vivem as ideias.
b) Incorporeidade: é uma característica que se desenvolve da anterior, isto é, do fato das Formas serem inteligíveis.
Os sentidos, ainda que em alguns casos precisem das ferramentas adequadas (como um microscópio, por exemplo), são sempre capazes de captar o corpóreo.
Como as Formas, por serem inteligíveis, não podem ser alcançadas pelos sentidos, supõe-se naturalmente que se tratam de realidades incorpóreas.
O interessante é que a noção de incorpóreo que temos até hoje é mais ou menos a mesma que nos apresenta Platão.
Isso, contudo, antes de ser uma vantagem nesse estudo, pode acabar configurando-se num grande problema.
O que acontece é que, antes de Platão, outros filósofos utilizaram o mesmo termo, porem com um sentido totalmente diferente.
Isso quer dizer que devemos tomar muito cuidado para não entendermos o uso de “incorpóreo” na filosofia pré socrática segundo as categorias platônicas que esse conceito assumiu, afinal, poderíamos acabar afirmando que já naquele tempo existia uma reflexão metafísica tal como apareceu em Platão, e isso estaria errado.
De modo geral, quando os filósofos anteriores falavam de algo incorpóreo, queriam designar apenas a ausência de uma forma (em sentido físico) determinada.
Para Platão não é assim, pois ainda que diga que as Formas são incorpóreas, ele as entende como realidades muito bem determinadas, e mais, como capaz de serem Causa de determinação das diversas coisas na realidade (porem sobre isso falaremos logo).
c) Perseidade: de maneira geral, é o princípio de que as Formas são por si e em si.
Platão apresenta isso no Fédon como o ponto de partida de uma das últimas reflexões de Sócrates com seus discípulos.
O autor estabelece que há o Belo em si e por si, a Bondade em si e por si, a Grandeza em si e por si etc.
Ora, essas realidades em si são justamente as Formas do Belo, da Bondade e da Grandeza.
Estas Formas, por sua vez, terão alguma relação (que também explicaremos mais pra frente) com todas as coisas sensíveis que forem belas, boas ou grandes.
E isso será extendido a toda a realidade física, de modo que da mesma maneira que temos pedras singulares no plano físico, na esfera supra-sensível encontramos a Pedra em si, quer dizer, a realidade inteligível e incorpórea que podemos chamar de Forma da Pedra.
Além do mais, o fato das Formas possuírem perseidade dá a elas solidez e estabilidade, de maneira que podemos dizer que são realidades objetivas, ou seja, que não dependem da subjetividade de ninguém.
d) Imutabilidade: basicamente é o princípio de que as Formas não podem estar em nenhuma maneira baixo o Vir-a-Ser e vai surgir como uma reação a um tipo de relativismo de origem heraclitiano.
A partir do pensamento de Heráclito sobre a mobilidade radical e constante do cosmos, alguns de seus seguidores afirmaram a impossibilidade do conhecimento verdadeiro das coisas.
Veja bem, se tudo está em constante mudança, então as realidades físicas e singulares são uma grande multiplicidade de estados moveis, de modo que no há um conhecimento objetivo sobre essas coisas, mas somente relativo ao estado em que estão ( e que no instante seguinte deixarão de estar).
Platão até afirma que é correto afirmar que existe mudança e movimento na realidade sensível, porem nega que se possa aplicar esse fenômeno na realidade das Formas justamente por serem em si e por si.
Pintura estragada.jpgSabemos que uma pintura que é bela possa se tornar feia por um série de motivos: porque foi borrada pela água da chuva, porque cai lama nela, porque perdeu a vivacidade de suas coras pela ação do tempo etc.
Isso, contudo, não indica uma mudança na Forma do Belo, mas sim nos meios físicos pelos quais a pintura tinha relação com o Belo em si.
Assim, as coisas belas podem tornar-se feias, mas justamente por serem realidade sensíveis e causadas; já o Belo em Si, na mediada em que é a Causa Verdadeira da beleza das coisas, não poderia tornar-se feia sem que, com isso, desaparecesse todo a beleza do mundo, afinal, são perdemos a Causa, consequentemente deixa de existir o efeito.
Para que as Formas sejam realmente a Causa Verdadeira das coisas, é necessários que a solidez e estabilidade que possuem por serem realidades em si e por si nos leve a concluir que não pode estar baixo o fluxo do movimento, pois de outra forma, não seria realmente estáveis e sólidas, quer dizer, não seriam a Causa Verdadeira.
e) Ser no sentido pleno: em poucas palavras, o filósofo está dizendo que as Formas são o Ser que é verdadeiramente, ou seja, o ser das coisas em sentido absoluto.
Essa característica leva em conta todas as demais para afirmar que aquilo que anteriormente alguns pré socráticos atribuíram ao Ser absoluto deve ser então atribuído às Formas.
Com isso, a distinção que antes tínhamos levantado entre plano físico e plano metafísico agora também pode ser entendida como plano do vir-a-Ser e plano do Ser.
A esfera do vir-a-Ser é a dimensão sensível da realidade, aquele que outrora Heráclito atribui a todo o Ser; por outro lado, a esfera do Ser é a dimensão inteligível da realidade, aquela que Parmenides havia atribuído a todo real.
Com isso, Platão é capaz de resolver o dilema entre Heráclito e Parmenides, pois percebe que nenhum dos dois deu conta da realidade como um todo, mas cada um de uma dimensão dela.
Desse modo, dizemos que a análise heraclitiana está correta no que diz respeito à realidade sensível, enquanto que de igual maneira está acertado o pensamento de Parmenides no que diz respeito à realidade inteligível.
Ao fim, poderíamos considerar o Ser de Parmenides como a Causa e o vir-a-Ser de Heráclito como o Causado (obviamente com alguns matizes que não estão presentes originalmente nesses autores).

Depois de termos vistos todas essas características das Formas, podemos dizer que falta acrescentar uma mais, porem faremos isso separadamente pelo fato de que está última é de longe a mais importante.
Se trata da Unidade das Formas.
Talvez você que esteja lendo esse texto possa ter tido a impressão de que até agora estávamos simplesmente dando informação sobre as Formas sem justificar muito, afinal, além de Platão ter simplesmente “estabelecido como um pressuposto” que elas devem ser em si e por si, também não foi justificado que realidade inteligível seja de fato real, mas apenas dissemos que Platão “descobriu” essa realidade e a “considerou” como Causa Verdadeira.
Isso, contudo, será um pouco melhor fundamentado na medida em que explicarmos a Unidade das Formas.
Para o autor, as Formas devem ser consideradas antes de qualquer coisa como a Unidade que explica as coisas sensíveis que se relacionam com ela, ou seja, que unificam a multiplicidade de seres singulares.
Alguns estudiosos do platonismo, a partir disso, desenvolveram uma argumentação para a existência real das Formas chamada de “prova que deriva da unidade do múltiplo”.
Vejamos como Reale apresenta essa argumentação:
Primeiro devemos ter em mente que existem muitos homens e que cada um deles é verdadeiramente homem.
Assim, deve existir algo que faça com que cada homem (individualmente) e com que todos os homens(como um todo) sejam homens e não outra coisa.
Esse algo não pode ser idêntico a algum dos seres singulares, pois, se o atribuíssemos a um determinado indivíduo entre os homens, cairíamos em uma das duas conclusões:
-os demais não seriam homens por não serem aquele indivíduo;
-os homens não seriam diferentes por serem todos o mesmo indivíduo.
Ora, as duas hipóteses são absurdas.
Assim, é necessário que haja algo separado dos homens individuais que se possa dizer de modo idêntico de todos eles.
Em outras palavras, se conclui que deve haver uma Unidade que transcenda a multiplicidade afim de a unificar.
Essa Unidade necessária para explicar a multiplicidade das coisas é o que Platão chama de Formas.
Tendo isso em mente, entendemos, por exemplo, o porquê de termos dito anteriormente que as Formas são a Causa de determinação das realidades sensíveis e singulares.
teoria-das-ideiasUm cavalo não é uma cavalo por suas características física (tamanho, resistência, formato etc), pois dessa forma os outros cavalos (que não são idênticos a ele em tamanho, resistência, formato etc) não seriam cavalos.
Em realidade, o que faz com que um cavalo seja um cavalo é a Unidade transcendente que Platão chama Forma do Cavalo.
Em suma, a Forma é um princípio de unidade inteligível e incorpóreo que explica e determina a realidade singular múltipla, de modo que pode ser considerada a Causa Verdadeira das coisas na medida em que é o Ser Verdadeiro delas que, em meio a todo vir-a-Ser, permanece o mesmo de maneira sólida e estável.

Imagino então que, com tudo que dissemos, já possuímos uma noção um pouco mais refinada de Formas.
Isso, entretanto, não impede que muitos continuem achando que é uma teoria um pouco absurda.
O que acontece é que o motivo que leva a essa impressão em alguns leitores não está tanto na Teoria das Formas em si mesma, mas em algumas conclusões que, por conta muitas vezes de uma má interpretação, tiramos dela.
Talvez, a pior de todas elas seja a afirmação de que existe na filosofia de Platão um dualismo entre sensível e Inteligível quando, na verdade, falamos de uma dualidade.
Veja bem, as palavras são parecidas, mas não são iguais.
De maneira geral, o termo dualismo diz respeito a um pensamento onde existem duas realidades distintas e separadas que se sobrepõem uma à outra.
Dualidade, contudo, costuma indicar uma mesma realidade que, por sua vez, é composta por duas dimensões distintas.
Isso vai ficar um pouco mais claro quando vermos a Metafísica de Aristoteles, pois esse autor afronta diretamente esse problema, porem podemos pensar que isso já está presente em Platão.
Dois Mundos.jpgOra, a má interpretação que costuma surgir a partir disso é a de que a distinção entre sensível e inteligível supõe uma separação, de modo que parece que Platão está defendendo a existência de dois mundo separados, o inteligível e o sensível.
O que acontece é que isso está errado, pois, ainda que você tenha aprendido isso na escola, Platão não afirma estritamente a existência de um Mundo das Ideias que está separado do nosso mundo.
A Teoria das Formas não apresenta um dualismo, mas uma dualidade, ou seja, o que Platão diz é que sensível e inteligível são duas dimensões de uma mesma realidade.
Para que isso fique claro, devemos entender um pouco as noções de Transcendência e Imanência das Formas em relação às coisas físicas.
Platão afirma que as Formas tem tanto algo de imanência quanto de transcendência, algo que parece contraditório, afinal, algo não pode ser imanente e transcendentes ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.
Entretanto, tal contradição desaparece se entendermos que as Formas são imanentes e transcendentes justamente sob aspectos distintos, de modo que o autor incluso afirma que a transcendência delas é a razão de ser de sua imanência.
Quando Platão afirma que as Formas transcendem ao sensível, o diz enquanto que são Causas Metaempíricas (além da possibilidade de serem conhecidas pelos sentidos).
Isso deve ser assim pelo fato de que, como já falamos antes, dentro das categorias empíricas (sensíveis e físicas) não foi possível encontrar a Causa verdadeira da realidade, quer dizer, da a razão de seu Ser.
E isso também podemos ver nos dias de hoje, afinal, frequentemente temos notícias de pseudo-cientistas que pretendente explicar a razão de Ser do universo apenas por meio de causas mecânicas e empíricas.
Tais tentativas, contudo, sempre falham miseravelmente e deformam a verdadeira ciência na medida em que vão contra seu próprio estatuto.
O que acontece é que não vou discutir isso agora, pois desde os primeiros textos faleis que não ia entrar (ainda) nas dificuldades que existem entre filosofia e pseudo-ciência.
Ao fim, com a transcendência das Formas Platão não quer dizer elas existem em um mundo separado, mas que só podemos explicar o sensível a partir do supra-sensível (corruptível com o incorruptível, relativo com absoluto, móvel com imóvel, múltiplo com Uno).
E além disso tudo, os primeiros aspectos das Formas que Platão aponta são justamente o de sua imanência, pois o autor afirma que elas são aquilo que, nas coisas sensíveis, permanecem idênticas, fazem com que sejam elas mesmas, as fixam em suas naturezas, permitem que sejam inteligíveis, em suma, fundamentam sua estrutura ontológica imanente.
Por último, agora que sabemos como não deve ser entendida a relação entre Formas e coisas sensíveis, devemos perguntarmos sobre como é essa relação.
Ora, ao longe de seus escritos, Platão fala dessa relação das seguintes maneiras: mimese ou imitação; métexis ou participação; koinonía ou comunhão; parusia ou presença.
Apesar disso, no Fédon, o autor diz que todos esses termos devem se entendidos apenas como propostas mais simples que ele não pretendia desenvolver.
E ele fala isso justamente pelo fato de que o desenvolvimento disso já seria chegar muito perto das “coisas mais importantes”, algo sobre o qual ele não queria escrever.
Assim, parecemos que chegamos ao limite de informações possíveis de tirar da obra de Platão sobre sua Metafísica, pois, ainda que seja possível um grande aprofundamento sobre o que foi dito acima, não podemos, todavia, avançar para novos horizontes.
Assim, só será possível que continuemos nosso estudo sobre a Metafísica platônica se acudirmos à tradição indireta de Platão, quer dizer, às Doutrinas Não Escritas.”

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993

 

Platão – Vida e Obras (Parte 1)

E depois de mais ou menos 1 ano de textos sobre a História da Filosofia, finalmente entraremos em Platão, um dos maiores filósofos de todos os tempos.
Sua influência na história da filosofia foi absurda, de modo que Whitehead chega a dizer que toda a filosofia ocidental pode ser considerada como uma série de notas de rodapé as suas obras.
Apesar de um pouco exagerado, o fato é que um estudo mais pormenorizado de seu pensamento é fundamental para qualquer um que se interesse por filosofia.

1- Vida de Platão
Antes de apresentarmos alguns pontos propedêuticos para então entrarmos na filosofia platônica, vale a pena conhecer um pouco sobre a vida desse grande filósofo.
Costas largasPlatão nasceu em 427 a.C. e seu nome de verdade era Aristócles, como seu avô.
Na verdade, Platão é um apelido que recebeu de seu professor de ginástica, Aristo, por conta de seu avantajado vigor físico (seria então algo como costas-largas)
Outra teoria para esse apelido seria pelo fato de ter a cara larga, ou ainda, pela amplidão de seu estilo.
Ao fim, tudo isso remete ao grego plátos (πλάτος) que tem a ver com amplitude, largura, extensão etc.
Arilton, seu pai, tinha orgulho de dizer que entre seus ancestrais estava o Rei Crodo (o último rei de Atenas) e, alem disso, sua mãe Peticione era descendente de Sólon, o grande legislador de Atenas.
Se ve que a nobreza da familia de Platão não dependia somente da riqueza que possuíam, mas sobre tudo de sua ascendência.
Além de seus pais, a família de Platão esta constituída por dois irmãos, Glaucon e Adimanto (que aparecem na República), e uma irmã chamada Potone. Quando seu pai morre, sua mãe se casa com Pirilampo e então nasce seu meio irmão Antifón que é um dos personagens do Parmenides.

Além de sempre ter sido muito inteligente, Platão, como todo jovem rico, recebeu uma exímia educação (física, política e intelectual). Sabemos por Diógenes Laercio que chegou a estudar pintura e escrever poemas e tragédias (que mais tarde simplesmente queimou). Chegou a frequentar a Crátilo (que mais tarde será um personagem que dará título a uma de seus obras), porem se pode imaginar que passou também por outros mestres tendo em vista tornar-se um bom político. Se pode dizer que em Platão está a  síntese do necessário para ser um político bem sucedido e um cidadão grego exemplar.

Aos 20 anos de idade começou a frequentar Sócrates, porem se pode imaginar que já o conhecia antes tendo em vista que seu tio, Carmides, já se relacionava com o filósofo.
Como muitos outros jovens da época, Platão passou a frequentar a Sócrates não tanto por sua filosofia em si, mas para através dela se preparar melhor para a vida política. O que acontece é que alguns acontecimentos vão mudar totalmente o rumo para o qual estava caminhando a vida de Platão. De um jovem preparando-se para a política acabará totalmente metido na filosofia.
Eis o que passou…
Em 404 a.C. começou na cidade de Atenas o que chamamos de Governo dos 30 Tiranos e dois parentes de Platão, Carmides e Cárdias, tinham funções de destaque nesse novo governo oligárquico.
Nessa época, é provável que Platão tivesse tido a oportunidade de se envolver mais com a política, porem deve ter sido uma desagradável testemunhar as violências cometidas durante esses tempo. Um exemplo foi a ordem que deram a Sócrates ir junto com uns outros tantos até a casa de um sujeito para o matar. Esse desgosto político, contudo, teve seu cume em 399 a.C. por conta da condenação de Sócrates à morte por Cicuta por parte dos democratas que haviam retomado o poder. Por motivo de uma doença se diz que Platão nem mesmo foi capaz de estar no momento da condenação, porem é seguro que isso marcou sua vida e sua relação com a política de Atenas. A partir desse momento, Platão não só se afastou de vez de qualquer militância política, mas também desenvolveu (ou segundo alguns fortaleceu) um certo desprezo pela democracia ateniense.

Ele e outros socráticos, talvez para evitar perseguições,  saíram de Atenas e foram para Megara, onde não ficaram muito tempo. Logo começou a realizar sucessivas viagens para estar com um grande número de pensadores e filósofos. Sem muita segurança sabemos de uma viagem para Cirene para estar com Teodoro, o matemático; e outra para o Egito para encontrar os chamados profetas.
Dionísio I.jpgCom segurança, contudo, sua Carta VII fala que em 388 a.C., por volta dos quarenta anos, Platão foi à Italia onde esteve com os pitagóricos e, posteriormente, tendo ido a Sicília para ver seus vulcões, foi convidado para viver na corte de Dionísio I, tirano de Siracusa.
Durante esse tempo teve problemas tanto com o tirano quanto com sua corte, porem criou um forte vínculo de amizade com Díon, o cunhado de Dionísio I.
Platão acreditou ter encontrado nele um bom discípulo que poderia se converter no que ele chamava de Rei Filósofo (em breve trataremos disso). O problema é que, por conta dos problemas com Dionísio, Platão foi mandado sob os cuidados de  Polis, um embaixador laucedoniano, para Egina, uma cidade que estava em guerra contra Atenas, onde foi feito escravo.
Não sabemos ao certo se foi vendido com escravo por Dionísio I ou simplesmente foi preso com escravo por ser ateniense, porem ao fim será salvo por Anicérides de Cirene e volta a sua cidade natal.

Chegando em Atenas, Platão compra um ginásio num parque dedicado ao herói Academo e ai funda sua Academia que rapidamente atraiu muito jovens e homens ilustres. Em alguns casos, escolas inteiras se transladaram para a Academia de Platão, como por exemplo a escola de matemática de Eudoxo. Além de filosofia, a Academia dava conta de ensinar outras ciências como as matemáticas, a astronomia, ciências físicas, botânica etc. Todo esse programa de estudos culminava então na filosofia.

Em 367 a.C., Platão vai mais uma vez para Sicília a pedido de Díon, pois Dionísio I havia morrido e seu filho, Dionísio II, era o novo tirano. Díon achava que o novo governante poderia favorecer melhor o objetivo de Platão de fazer uma boa cidade, porem ele se mostrou pior que seu pai. Dionísio II exilou a Díon e manteve Platão praticamente como um prisioneiro até que, por conta de estar ocupado com um guerra, acabou deixando que ele voltasse para Atenas.

Em 361 a.C., Díon, com esperança de poder voltar de seu exílio, convence a Platão de voltar mais uma vez para Sicília, uma vez que Dionísio queria mais uma vez o filósofo na corte. Platão, pensando que o tirano mudaria suas atitudes, aceita o convite, mas isso foi um grande erro, pois dessa vez chegou a correr risco de vida. Sequer se pode imaginar o que seria de Platão sem a ajuda e intervenção de Arquita de Tarentos, um filósofo pitagórico amigo de Platão. Em 360 a.C. Platão volta para Atenas e ai fica na direção da Academia até sua morte em 340 a.C. Quanto a Díon, em 357 a.C. consegue tomar o poder, porem é morto 4 anos depois.

Visto então algo da vida de Platão, vejamos suas obras.
A primeira coisa reconfortante sobre o autor que podemos dizer é que não existe aqui aquela situação de obras perdidas que tínhamos entre os pré socráticos, ou seja, todas as obras platônicas da qual temos notícias ou referências chegaram até nós.
Apesar disso, não se sabe bem a cronologia dessas obras uma vez que não vieram datadas.
Por conta dessa situação, muitos especialistas apresentaram diversas propostas sobre a ordem segundo a qual Platão escreveu e publicou seus diálogos, de modo que, ainda que existam propostas mais populares ou razoáveis, estamos longe de qualquer tipo de unanimidade.
Apesar disso, podemos sim apresentar algo sobre a cronologia dos escritos platônicos, porem ante disso faz falta entendermos um pouco melhor a lugar que têm o texto escritos no pensamento do autor…

2- Textos escritos e tradição oral.
Entre XVII d.C. e XIX d.C., houve uma tendência de considerar as obras de Platão como suficientes para o entendimento de toda a filosofia do autor. Isso quer dizer que se acreditava ser possível entender todo o pensamento de Platão sem ajuda de nenhum outra fonte além de suas próprias obras. Esse modelo se sustentava no seguinte raciocínio:
-premissa 1: o texto escrito é a expressão mais plena do pensamento de qualquer autor;
-premissa 2: temos todos os escritos de Platão;
-conclusão: por meio dos escritos que possuímos de Platão podemos conhecer seguramente todo o seu pensamento.
Apesar de parecer uma proposta razoável, o fato é que parte dos estudiosos do platonismo atuais a consideram incorreta.
Há duas obras de Platão (Fedro e Carta VII) que colocam justamente a primeira premissa em cheque, ou seja, que parecem indicar que o próprio autor não considerava o texto escrito como a melhor e principal maneira de expressar o pensamento filosófico.
Platão Tak Show.jpgNo Fédro, Platão da preferencia ao discurso oral por cima do discurso escrito. Pretende indicar que “as coisas de maior valor” para a reflexão filosófica não devem ser postas por escritos, mas reservadas ao discurso oral. Dentro desse mesmo raciocínio diz que não é verdadeiro filósofo aquele que não possui nenhum conhecimento que seja melhor que seus próprios escritos. Ao fim, as coisas escritos seriam como “as coisas de menor valor” que serviriam apenas como um gatilho para a memória do sujeito que já possui o conhecimento das “coisas de maior valor”.
Claro que, como já havia apontado Nietzsche, Platão fala isso no Fédro supondo a existência de sua Academia, o lugar onde se daria o discurso oral que poderia fazer com que determinado sujeito alcançasse o conhecimento sobre aquilo de “maior valor”.

Dito isso, pode ser que alguém se pergunte o que são essas coisas que Platão considera como as de “maior valor”. Já sabemos que Platão disse que não escreveria sobre elas, de modo que não devemos esperar que estejam listadas e explicadas em alguma de suas obras. Apesar disso, a Carta VII nos dá algumas pistas.
Primeiramente devemos observar que nesse texto o autor diz explicitamente que sobre essas “coisas de maior valor” não existe nenhum texto seu nem nunca existirá. Isso é assim por ele não considerar que elas possam ser aprendidas de modo convencional, mas somente mediante uma serie de discussões entre discípulo e mestre no que ele chama de uma comunidade de vida (e mais uma vez temos Platão pressupondo sua Academia).
Apesar de rdizer que não se deve escrever sobre as “coisas de maior valor”, nessa obra Platão utiliza algumas expressões para referir-se a elas: “todo”, “o falso e verdadeiro de todo o Ser”, “as coisas mais sérias”, “Princípios Supremos de toda a Realidade” etc.

Em conclusão se pode dizer que, como aquilo que parece ser o cume da filosofia platônica não deve ser posta por escrito, está equivocada a primeira premissa (o texto escrito é a expressão mais plena do pensamento de qualquer autor), de modo que também estará a conclusão (por meio dos escritos que possuímos de Platão podemos conhecer seguramente todo seu pensamento).

Contudo, agora um leitor atento poderia então levantar o seguinte questionamento…
Mas se está tão claro nas obras platônicas que o mais importante não é o que está por escrito, então porque durante tantos anos os especialistas não consideravam isso?
Pois bem, boa pergunta!!!

Para entendermos isso, devemos entrar um pouco na cabeça do homem moderno…
Falar de Idade Moderna é falar de uma sociedade e cultura fundada sobre a escrita que, por sua vez, é entendida como o meio por excelência pelo qual se transmite toda forma de saber. Por conta dessa relação da modernidade com a escrita, a tendência da maior parte dos estudiosos do passado (com excessão de uns poucos, como Nietzsche) foi a de reduzir o valor hermenêutico dos testemunhos encontrados no Fédron e na Carta VII  e relativizar seus significados.

Se essa era a situação no século XIX a.C., nos dois últimos séculos as coisas começaram a mudar.Audiovisuais Surgiram (e ainda estão surgindo) uma serie de meio de comunicação distintos do texto escrito que são capazes de transmitir vários dos conteúdos que antes só estavam disponíveis por meio dos livros. Um exemplo seria o caso da grande quantidade de páginas que hospedam video aulas ou simplesmente a variedade de canais de youtube que ensinam desde a maneira certa de passar maquiagem até o conhecimento básico de línguas como japonês ou mandarim.
Isso não significa que o texto escrito se tornou obsoleto, mas apenas que é possível alcançar uma grande gama de conhecimentos por outros meios. Se pode dizer que o período atual pelo qual estamos passando é privilegiado por ser testemunha do encontro de duas maneiras diferentes de transmitir conhecimento.

Algo análogo, ainda que com diferenças monstruosas, também passou na época do Platão. A oralidade que até então tinha sido o eixo fundamental que sustentava a  transmissão de conhecimento dentro da cultura grega estava pouco a pouco sendo substituída pela escrita. Se pode dizer que o autor experimentou de maneira muito especial o choque dessas duas tradições, pois ainda que certamente tivesse sido exposto ao modelo cultural fundado sobre a escritura (até porque escreveu muito), foi discípulo de Sócrates que, como já vimos, nunca escreveu sua filosofia. Ainda que Platão percebesse a importância da escrita, seu mestre era um sujeito cuja a atividade pode ser pensada como um paradigma da cultura da oralidade em filosofia.

Esse choque de culturas também compõe o contexto da atividade filosófica de Platão, de  maneira que se entende como ele pode ter sido tão excelente escritos e, ao mesmo tempo, defensor da escrita como algo limitado. Desse modo, se pode resumir esse tema em alguns pontos:
-Platão dominava a arte de escrever (e isso nos prova a qualidade de seus escritos);
-Platão sabia da importância da escritura para a transmissão do conhecimento (tanto é assim que grande parte de seu pensamento filosófico se encontra em suas obras);
-Platão considerava a escritura como um meio de transmissão limitado, de modo que alguns assuntos ele simplesmente não tratava nos escritos.
Em resumo, as obras de Platão são sim uma grande via de acesso para a sua filosofia, porem, se aceitarmos que haviam temas sobre os quais ele não tratou em seus diálogos e cartas, também aceitamos que para “conhecer seguramente todo o seu pensamento” faz falta algo mais que suas obras. Esse “algo mais” é o que hoje em dia se chama de “Doutrinas Não Escritas” de Platão.

3. As Doutrinas Não Escritas;
Aqui se trata de um tema que, além de ser bastante complexo, é motivo de muitas discussões entre especialistas em Platão.
Sendo assim, não pretendo aprofundar muito esse assunto, porem é importante saber algo sobre.
Apesar das discussões serem bastante recentes, o conceito de “Doutrinas Não Escritas” é apresentado já por Aristoteles em sua Física.
Também sabemos que o autor evitava apresentar esses assuntos fora da Academia, pois, segundo o testemunho de um tal Aristóxenos, Aristoteles costumava contar que quando Platão fazia um conferencia sobre isso acabava sendo desprezado e censurado por aqueles que o ouviam.
O mais importante, contudo, é estabelecermos como é possível que venhamos a acessar essas doutrinas, afinal, se fossem totalmente inacessível não teríamos motivos para estar falando delas.
Assim, o que fizeram grande parte dos pesquisadores foi buscar nas obras dos discípulos de Platão referências a esses ensinamentos, algo que parece estranho uma vez que já sabemos que Platão havia dito que não era para escrever sobre isso.
O que acontece é que Platão nunca falou que essas doutrinas eram impossíveis de serem escritas, mas que fazer isso seria simplesmente algo inútil ou nocivo para os que, sem serem capazes de as entenderem pela oralidade, as estudassem por meio de escritos.
E a prova disso é que, como já foi dito, muitas pessoas o censuravam depois de escutarem suas conferencias sobre esse tema simplesmente por não entenderem.
Ao fim, a proibição feita por Platão de escrever sobre os temas de “maior valor” pare estar fundamentada principalmente na convicção de que, para o processo educativo, a oralidade tinha a supremacia sobre a escrita.
Tal pensamento é certamente uma herança intelectual que Platão tirou de seu mestre Sócrates.
Apesar disso, muitos discípulos de Platão não chegaram a conhecer Sócrates, de modo que já estavam suficiente distantes do filósofo para levar tanto a sério isso da supremacia da oralidade.
Assim, esses homens que foram educados quase exclusivamente na cultura escrita foram capazes de colocar por escrito algo dos temas que Platão nunca ousou escrever.
Ora, o conjunto desses discípulos que escreveram sobre as “coisas de maior valor” é o que chamamos, dentro do âmbito do platonismo, de tradição indireta, a fonte da qual tiramos o pouco que sabemos sobre as Doutrinas Não Escritas.
Por último, mas não significando que tenha pouco importância, Platão nunca considerou essas doutrinas como conhecimentos secretos ou misteriosos, mas de um ensinamento que o autor pensava que deveria vir seguindo de uma preparação prévia que ele proporcionava em sua Academia.
Tanto não se trata de algo secreto ou misterioso que podemos encontrar nos escritos de Platão indicações e alusões ao que parece ser sua Doutrina Não Escrita.
Por fim, temos que essas referências que Platão fazia em suas obras às Doutrinas Não Escritas e o que chamamos de Tradição Indireta de seus discípulos são os lugares onde os grandes pesquisadores sobre o assunto podem buscar o acesso às “coisas de maior valor”.

Além disso tudo que dissemos sobre as obras de Platão, outro ponto interessante é que quase todos seus escritos são diálogos.
DiálogoIsso indica que Platão está escrevendo sua filosofia tentando manter a forma de filosofar de seus mestre Sócrates que, como sabemos, se trata de cuidar e educar a alma, algo que ele acreditava que só poderia ser feito mediante o diálogo vivo.
Assim, temos que os diálogos Platônicos buscam reproduzir nos escritos a atividade filosófica de Sócrates.
E é interessante a maneira pela qual Platão faz isso, pois, além de apresentar um personagem Sócrates fazendo incontáveis perguntas, também faz com que os discursos parem ou mudem de tema de maneira meio brusca.
Esse corte repentino permite que o leitor descubra tanto novas possibilidades de pesquisa quanto que tenha que seguir a investigação por si mesmo.
Ao fim, por conta dessa dinâmica socrática colocada nos textos, nasce o que chamamos de Diálogos Socráticos. Esse será o género literário adotado pelos demais discípulos de Sócrates e por outros filósofos posteriores, ainda que seja Platão o mias notório representante desse modo de escrever. Sobre suas características, contudo, se verá na segunda parte desse texto.

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-ABBAGANO, Nicolas. Historia de la Filosofia. Barcelona: Presença.
-FRAILE, Guilhermo. História de la Filosofia-Grecia y Roma. Madrid: Ed. BAC, 1976.
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993