Platão: Metafísica Parte 2

“No último texto trabalhamos sobre a Teoria das Formas de Platão, isto é, sobre o pensamento metafísico do autor que esta presente em suas obras.
De fato, tal proposta filosófica tal como a apresentamos é mais do que suficiente para justificar os demais pensamentos que aparecem nos demais escritos.
Apesar disso, podemos levantar um problema dentro da própria Teoria das Formas que não aparece resolvido em nenhum dos diálogos do autor.
Para entendermos de que se trata esse problema, devemos entrar um pouco no modo grego de pensar.
Desde os pré socráticos, parece que todo o intento de explicar a realidade está sintetizado na busca por um princípio unificador.
De fato, todos eles tentaram explicar a multiplicidade do cosmos a partir de uma única Matéria Primordial em Estado Primordial, de modo que a expressão mais extrema dessa postura encontramos no eleatismo (filosofia de Parmenides e companhia).
O mesmo vemos na Filosofia Moral de Sócrates onde toda a vida ética do indivíduo era reduzidas à virtude enquanto ciência.
Assim, seguindo a visão de mundo de seu tempo, Platão também concebe a Teoria das Formas como uma maneira de unificar a multiplicidade da realidade, afinal, como já foi visto no último texto, o principal papel das Formas é o de unificar a multiplicidade das coisas sensíveis e singulares.
E aqui surge a dificuldade, pois Platão não fala de apenas uma única Forma, mas de uma multiplicidade delas.
Em outras palavras, Platão explica a pluralidade sensível com uma pluralidade inteligível.
O problema é que a Teoria das Formas não é capaz de resolver essa multiplicidade do Inteligível, de modo que faz falta algo capaz de explicar isso que, todavia, não está desenvolvido nos escritos do autor.

Tal situação, contudo, não significa que estamos estagnados, afinal, podemos contar a a Tradição Indireta e com algumas pistas que o filósofo vai deixando em suas obras.
Mesmo que ele não tenha querido colocar por escritos as “coisas de maior valor”, o fato é que pelo menos as estava pressupondo quando escreveu.
Fédon.jpgNo próprio Fédon temos uma indicação claríssima de que poderia existir algo além da Teoria das Formas.
Quando Platão retrata Sócrates falando sobre as Formas, às apresenta como um postulado, quer dizer, algo que Sócrates estabelece como verdadeiro e que serve de critério para saber o que é correto (aquilo que está de acordo com o postulado) e o que é errado (aquilo que não está em acordo com o postulado).
O que acontece é que em determinado momento do Fédon, Sócrates vai dizer aos que estavam presente como deve funcionar isso de pensar por postulados.
Além de examinar todas as consequências que decorrem dele, é preciso em seguida buscar um outro postulado que o justifique, quer dizer, que o fundamente.
Assim, o seguinte postulado deve ser arduamente examinado e mais uma vez se deve buscar outro que o justifique, de modo que tal processo se repete até que se alcance o que podemos chamar de “Postulado Supremo”, isto é, um postulado que não tem necessidade de outro que o justifique.
Também na República vemos Platão falar, através de Sócrates, desse “Postulado Supremo” como o que está acima de todos os demais postulados e funciona como o vértice ao qual todos ele convergem.
Isso é interessante, pois parece bastante com o método dialético de Teses e Críticas que propunha Sócrates em seu exame.
A dificuldade, todavia, vem do fato de que Platão não desenvolve em seus escritos esse tema, de modo que não temos muitos dados sobre o que seria o “Postulado Supremo”.
Entretanto, a Tradição Indireta nos dá mais ou menos uma idéia sobre o que tinha Platão em mente ao falar essas coisas.
Segundo ela, o filósofo considerava que acima das Formas estavam os Princípios Supremos, quer dizer, as “coisas de maior valor”.
Baseados nisso, me parece razoável pensar que somente tais Princípios Supremos possam ser tais que, uma vez atingidos, excluam a necessidade de uma justificação ulterior.
Será então no conjunto das Doutrinas Não Escritas sobre os Princípios Supremos que encontraremos informações sobre o que parece ser o cume e o fim da metafísica platônica que fundamentará sua Teoria das Formas.

Aristoteles e Sexto Empírico são alguns dos filósofos que, ao comentar Platão, indicam que os Princípios Supremos são o Uno e a Díade.
Esse segundo princípio, chamado Díade, pode ser um pouco mais difícil de entender, de modo que as próximas linhas serão um pouco complicadas, porem, uma vez que o entendamos bem, o papel do Uno fica mais claro.
[Sendo assim, vamos com calma… e Coragem!!!]
Coragem.jpg
Grande e Pequeno.jpgAristoteles quando fala dela a chama de Grande-e-Pequeno, mas isso devemos entender como infinita grandeza e infinita pequenez, afinal, falar de grande e pequeno poderia acabar sendo algo demasiado palpável e só nos confundiria.
Em outras palavras, podemos entender a Díade como tendência ao infinitamente grande e ao infinitamente pequeno ao mesmo tempo, de modo que disso entendemos que ela é Ilimitada.
Além disso, Sexto Empírico vai referir-se a ela como a Dualidade Indeterminada pela qual todas as dualidades determinadas são dualidades.
Parece algo estranho de se dizer, mas tem sua razão.
Em primeiro lugar temos que agora, além de Ilimitado, esse princípio também é Indeterminado.
Depois, para facilitar, vamos ler a palavrinha “Dualidade” como “Multiplicidade”, pois além de nesse contexto significarem a mesma coisa, é com o segundo termo que viemos trabalhando desde que começamos com Platão.
Se assim o fizermos, temos então que a Díade é a Multiplicidade Indeterminada pela qual todas as multiplicidades determinadas (inclusive as Formas em seu conjunto) podem ser chamadas de multiplicidade.
Em resumo, vamos dar para a Díade o seguinte apelido: Princípio (ou Motivo) Indeterminado e Ilimitado de Multiplicidade.
Agora, quando falamos de Multiplicidade, devemos devemos agregar ainda outros três termos que têm muito que ver com esse conceito, são eles: pluralidade, diferença, gradação.
Sendo assim, a Díade será o Princípio Indeterminado e Ilimitado que explica o porquê das coisas (e também das Formas) serem plurais (há várias), diferentes (não são todas iguais) e gradativas (há uma hierarquia).

Uno.pngO Uno, por sua vez, atua justamente como um polo oposto à Díade, quer dizer, como um Princípio de Unidade Determinante e Limitante.
Em Metafísica, a ação do Determinante no Indeterminado faz surgir o Determinado, e a ação no Limitante no Ilimitado faz surgir o Limitado (algo que mais ou menos já havíamos visto nos pré-socráticos).
Com isso, o Uno atua sobre a Díade de modo que, na medida em que a determina e a limita, faz nascer múltiplas realidades determinadas e limitadas.
Ora, falar de algo determinado e limitado permite que eu o entenda como Unidade, de modo que o que teremos serão Unidades Múltiplas (pois se fala de várias dessas unidades que são diferentes e estão hierarquicamente organizadas).
Assim, as Formas que derivam na ação do Uno sobre a Díade podem ser consideradas justamente como Unidades Múltiplas e, cada um delas, como uma síntese de unidade e multiplicidade.
Ao fim, parece correto afirmar que Platão entende toda a realidade (incluso o Ser, mas disso falamos depois) como uma derivação da “mescla” dês dois Princípios Supremos, porem, essa última informação pede algum matizes.

Quando falamos de “mescla” e de “dois” Princípios podemos cair no erro comum de pensar no Uno e na Díade como realidade independentes e separadas que um dia se juntam e “VRAU”: aparecem as Formas!!!
A primeira coisa que devemos ter em mente é que não existe a menor possibilidade de separação entre Uno e Díade, pois um Princípio depende estruturalmente do outro.
No último texto, falávamos algo parecido sobre a relação entre Inteligível e sensível, quer dizer, que não existia dualismo (separação), mas dualidade.
Bipolar.jpg
Pois bem, no caso do Uno e da Díade nem de dualidade podemos falar, mas de algo que poderíamos chamar de “bipolarismo” (mas não tipo esse lance que se vê em psicologia).
Veja bem, entre os gregos antigos parece que podemos falar de algo chamado “forma polar de pensamento”, quer dizer, uma modo de ver o mundo como pares de contrários que está na base de toda a produção espiritual grega.
Alguns exemplos encontraríamos na própria mitologia grega onde as forças cósmicas do princípio são divididas em duas esferas representadas por Caos (amorfo) e Gaia (forma) ou no fato de que cada divindade possui em si mesma um misto de forças polarmente opostas (Artemis é ao mesmo tempo virgem e a protetora das mulheres que dão à luz) e um outro deus ao qual está polarmente contraposta (Dionísio e Apolo).
Baseando-se nisso, a pesquisadora Paula Philippson afirma que essa estrutura é o modo geral de pensar de todo homem grego e tira ainda algumas conclusões interessantes para o tema que estamos tratando.
Segundo a especialista, na “forma polar de pensamento” os contrários não são somente indissolúveis, mas também logicamente condicionados pela oposição que existe entre eles, de modo que se deixássemos de lado um dos polos, o outro perderia seu próprio sentido.
Com isso em mente, entendemos que a relação “bipolarista” do Uno e da Díade não permite que pensamos que se tratam de “duas” realidades separadas que simplesmente “se mesclam”, mas de Princípios da realidade mutuamente condicionados que se separados perdem totalmente o sentido.
De certa forma, poderíamos dizer que com sua Teoria dos Princípios, Platão seja talvez o mais elevado representante do modo típico de pensar dos gregos.
Com o que então já foi dito até agora sobre os Princípios Supremos de Platão, penso que podemos dar mais alguns passos.

Já sabemos que deles derivam as Formas, porem não somente.
Em primeiro lugar, existe realidades muito próximas das Formas que também derivam da ação do Uno sobre a Díade, são elas os Números Ideias sobre os quais logo falaremos.
Depois, parece que Platão não utiliza os Princípios Supremos para explicar somente o Inteligível, mas também a realidade como um todo.
Segundo a Tradição Indireta, o filósofo categoriza o real partindo de que todas as coisas devem remeter ao Uno e à Díade.
E isso veremos melhor agora…

Para o autor, podemos dividir o real em dois grupos de seres: aqueles que são por si e aquele que estão sempre em relação com outro.
Esse último grupo, por sua vez, se subdivide em dois: “Opostos Contrários” e “Correlativos”.
Ao fim, temos 3 grupos de seres e cada um desses grupos terá um modo de referir-se aos Princípios.
Antes porem que digamos como isso funciona, algo deve ficar claro desde já.
Em todos os seres está sempre a atuação dos dois Princípios, de modo que mesmo que digamos que um grupo está baixo determinado Princípio, isso não significa não depende em nada do outro, mas somente que prevalece aquele e não este.
Voltando então aos grupos de seres, temos o seguinte:
“Por Si mesmos” – Prevalece o Uno
“Contrários Opostos” – Em alguns prevalece o Uno e em outros a Díade.
“Correlativos” – Prevalece a Díade
O grupo dos “Por Si mesmos”, por prevalecer neles a ação do Uno, estão constituídos de todos os seres que são totalmente definidos e determinados, quer dizer, que são cada um deles uma unidade estruturalmente independente da outra.
Dizemos então que estão baixo o género na “Unidade”.
Exemplos seriam homem, cachorro, água, árvore, tira etc.
Cada um dos seres citados é totalmente independente, quer dizer não possuem nenhum outro ser com o qual estão sempre em relação.
Isso, entretanto, não é assim nos seguintes grupos.
Se o primeiro grupo está composto de unidades determinadas, esses outros dois estão compostos de pares de seres que dizem respeito um ao outro, porem tendo essa mutua relação marcada por algumas características específicas de cada um dos grupos.
O que chamamos de “Contrários Opostos” são tais que os elementos de cada um dos pares desse grupo não podem nem existir nem deixar de existir simultaneamente, quer dizer, o desaparecimento de um implica necessariamente o produzir-se do outro.
Exemplos seriam pares como Igual-e-Desigual, Morte-e-Vida, Imóvel-e-Movido etc.
Por outro lado, com o “Correlativos” é diferente, pois são marcados pelo fato de que necessariamente produzem-se juntos e desaparecem juntos, quer dizer, falar de um deles é necessariamente considerar o outro.
Exemplos desse grupo seriam pares como Grande-e-Pequeno; Alto-e-Baixo; Direito-e-Esquerdo etc.
É ainda interessante observarmos que Platão está chamando essas realidades de seres, afinal, não é bem assim que pensamos hoje em dia.
Pois bem, os pares do grupo dos “Contrários Opostos” estão baixo o género no “Igual-e-Desigual”.
Vemos então que um dos pares do qual o grupo está constituído (Igual-e-Desigual) dá nome a todo o género, algo que pode causar confusão, mas que é mais comum do que se imagina (por exemplo o fato de “homem” ser o nome genérico do conjunto de homens e mulheres).
Esse género possui dois nomes pelo fato de que cada um diz respeito a um elemento do par, de modo que em todos os pares de “Contrários Opostos” haverá um elemento que diz respeito ao “Igual” e outro ao “Desigual”.
O critério para saber a que coluna pertence cada elemento é se ele está ou não submetido ao “mais-ou-menos”, de modo que os que assim estiverem estão da série dos “Desiguais” e os que não na dos “Iguais”.
Por exemplo, aquilo que é “Imóvel” não pode ser “mais-ou-menos” imóvel, quer dizer, é sempre igualmente imóvel.
Já o “Movido” aceita essa gradação de “mais-ou-menos”, afinal pode haver a desigualdade de ser mais movido agora e menos movido depois.
Como o Uno é a melhor representação do que é sempre igual, se pode concluir que nos que estão baixo o género do “Igual” prevalece o Uno.
O “Desigual”, por sua vez, na medida em que implica “mais-ou-menos”, também supõe o Defeito e o Excesso, quer dizer, a Indeterminação, de modo que nos elementos que estão baixo o género do “Desigual” prevalece a Díade.
Por último, temos o grupo dos “Correlativos”, onde prevalece sempre a Díade.
Pelo fato da relação entre os pares desse grupo ser totalmente carente de uma definição estrutural, temos que todos os elementos do grupo estão submetidos ao “mais-ou-menos”, quer dizer, podem crescer ou decrescer independentemente um do outro.
Isso significa que todos os elementos estão baixo o género do “Desigual”, quer dizer, do Defeito e do Excesso, de maneira que prevalece em cada um deles a Díade.
Devemos levar ainda em conta sobre essa divisão que Platão faz da realidade não está fundamentada somente ema distinções lógicas e abstratas, mas no próprio Ser das coisas, ou melhor, no conhecimento acerca da estrutura do Ser.
Além dessa proposta de categorização do real ajudar a esclarecer algo sobre o que falamos dobre os Princípios, também será um dos fundamentos e inspirações aos quais Aristoteles buscaria para desenvolver sua própria doutrina de Categorias.

Além de utilizar os Princípios Supremos para explicar as Formas e as categorias da realidade, Platão também os utilizaria para falar do que já anunciamos como “Números Ideais”.
Antes de mais nada, devemos ter em mente que não estaremos nos referindo aos números matemáticos (2, 3, 4 etc), mas aos Números Metafísicos, quer dizer, a causa e fundamento dos próprios números matemáticos.
Assim, quando nos referirmos aos “Números Ideais”, simplesmente vamos dizer Números (começando com letra maiúscula).
Outro problema na doutrina platônica sobre os Números é que existe uma redução das Formas aos Números que, por nem sempre é bem entendida, pede que expliquemos um pouco sobre a relação que existe entre Números e Formas.
Em primeira lugar, a relação que Platão admite entre essas duas realidades não tem nada a ver com aquela “mística numérica” dos pitagóricos que identificava cada coisa da realidade com um número específico.
Numerologia.jpgPara, contudo entendermos como verdadeiramente se dava essa relação, devemos entrar um pouco na cabeça do homem grego daquela época.
Para o típico cidadão grego, os números são, antes de mais nada, pensados como relações de grandeza ou frações de grandezas, quer dizer, como proporção.
Nesse sentido, é extremamente comum olhar para relações e traduzi-las por estruturas numéricas ou proporções.
Homo Quadratus.jpgExemplo disso seriam os famosos cânones gregos no que dizia respeito à produção artística, sendo sem dúvida um dos mais famosos o chamado Homo Quadratus (que ganha fama com Leonardo Da Vinci).
Enfim, o fato é que os gregos eram capazes para olhar para obras de artes plástica e enxergar em suas figuras e formatos uma série de relações numéricas e proporções que para o homem moderno talvez imperceptível (a menos que o sujeito estude arte, mas ai não vale).
Ora, tal como isso modo de ver as coisas funcionava para as figuras e formatos das coisas sensíveis, não é de se estranhar que Platão, ao pensar nas Formas, também concluísse que por detrás delas existiria algo parecido.
De fato, se pensarmos que existe um Multiplicidade de Formas, isso supõe que elas são muitas, diferentes e hierarquicamente organizadas.
Essa hierarquia das Formas pode ser entendida como a “posição” de uma Forma em relação à outra segundo sua maior ou menor Universalidade e a maneira mais ou menos complexa pela qual se relaciona com as demais Formas.
Nesse sentido, falamos que entre as Formas existe como que um “trama de relações”.
Ora, se os gregos antigos (e ai está incluído Platão) entendia os número como relação e proporção, é quase óbvio que o autor tentaria traduzir a “trama de relações” das Formas por uma relação numérica.
Assim, isso que chamam de “redução” das Formas à Números não é nada mais do que outra elevada expressão do espírito grego com a qual nos brinda Platão em suas Doutrinas-Não-Escritas.
Outro ponto interessante é que segundo muitos estudiosos, os Números representariam de maneira paradigmática a estrutura sintética de Unidade-na-Multiplicidade, afinal, mais do que qualquer Forma ou coisa singular, eles derivam de uma limitação (ação do Uno) sobre uma multiplicidade ilimitada de grande-e-pequeno (Díade), motivo pelo qual se afirma que ele foram os primeiros gerados e que a realidade possui uma estrutura numérica.
Por último, no que diz respeito aos números em Platão, vejamos brevemente em que consistem os números matemáticos, pois, ainda que não estejam equiparados às Formas tais como os Número Metafísicos, tão pouco podem ser considerados como realidades sensíveis.
Basicamente, o filósofo diz que os número matemático (este com os quais trabalhamos na escola) estão numa situação intermediária entre sensível e Inteligível.
Isso, incluso, testemunha o Aristóteles.
O que acontece é ao mesmo tempo em que eles são eternos e imóveis (algo que os aproxima das Formas) também múltiplos segundo a mesma espécie (algo típico das coisas singulares).
Pluralidade de números.pngAssim, difere da realidade sensível por claramente serem inteligíveis, porem também diferem da realidade das Formas e dos Números Metafísicos pelo fato de que as operações aritméticas implicas o uso de muitos números iguais.
Se então quisermos falar isso com um vocabulário mais rebuscado, podemos falar de entes sensíveis (coisas singulares), entes inteligíveis (Formas e Números Metafísicos) e entes matemáticos (realidades intermediárias entre o sensível e o inteligível).
Essa situação intermediária dos chamados entes matemático justifica o porquê de, na proposta pedagógica de Platão, o autor ter a matemática como uma preparação para a Dialética (que é propriamente o conhecimento sobre as realidades inteligíveis), pois seria um nível de conhecimento justamente intermediários entre este e o o conhecimento sensível.
Ao fim, temos que Platão não pretendia matematizar a Metafísica, mas fundamentar metafisicamente a matemática.
E com isso parece que já falamos o suficiente sobre a Teoria dos Princípios de Platão.
Admito que não se trata de um tema fácil e, talvez, você não entenda tudo numa primeira leitura.
Isso, contudo, não é um problema, afinal, é de Platão que estamos falando.
Para então finalizarmos esse texto, vou deixar uma solução interessante que a Teoria dos Princípio apresenta para uma das passagens mais misteriosas e belas das obras de Platão.
Muitas delas estão consignadas naquele livro que pode ser considerado a “Grande Obra” do autor, isto é, a República.
[Mais pra frente vamos falar mais sobre essa obra, de modo que não vou explicar nesse texto todo o seu contexto.
Vale, porem, frisar que toda essa obra é como um paradigma da relação entre escrita e oralidade, afinal, muitas vezes vemos que Platão nem afirma nem oculta seu pensamento, mas o fala por meio de alusões, imagens e analogias.
Isso é interessante pois mostra que, por mais que ele evite escrever sobre as “coisas de maior valor”, é simplesmente impossível que fale de filosofia sem pelo menos as estar supondo]
Ao fim de sua defesa à Justiça (sim, nessa obra o autor terá que defender a noção da Justiça como algo bom mediante alguns ataques que ela recebeu), o autor afirma que para compreender a fundo a natureza dessa virtude seria necessário alcançar a verdadeira “justa medida”, algo que podemos entender como uma “Medida Suprema”.
Todavia, para alcançar a “Medida Suprema”, faz falta alcançar um tal “Conhecimento Máximo” que ele diz ser o conhecimento sobre a “Idéia (ou Forma) do Bem” que seria o que faz com que todas as virtudes (incluindo a Justiça) sejam úteis e proveitosas ao homem.
Nesse momento, o que o leito esperaria é que o autor fosse definir o que é o Bem por si e em si, porem ele não faz isso.
A primeira desculpa que o autor dá pra não fazer isso é colocar na boca de Sócrates que seus interlocutores já haviam escutado diversas vezes seu pensamento sobre esse assunto.
O problema é que se Platão não falasse nada sobre isso, o seu texto acabaria ficando sem sentido e coesão, afinal, parece que a “Ideia do Bem” está no núcleo da filosofia que o autor apresenta na República.
Dessa maneira, a solução do filosofo é prometer que falaria propriamente do Bem em outra e ocasião e que, naquele momento, falaria do “Filho” do Bem.
Obviamente Platão está introduzindo aqui uma analogia, afinal, sendo “Filho” do Bem, a realidade da qual o autor falaria deve ter algumas características herdadas de seu “Pai”.
Ora, o imagem que Platão utiliza para falar do “Filho” do Bem é o Sol, de modo que a analogia consiste entender que aquilo que o Sol era para o sensível (obviamente segundo o entendimento da época) deveria ser o Bem para o Inteligível.
Vejamos essa analogia:
A faculdade do homem de Ver (a visão) corresponde perfeitamente ao Ser visível (um outro termo seria visibilidade, mas não estou seguro se posso usar) das coisas.
Ora, a visão e o visível estão unidos pelo vínculo que se chama luz da qual a fonte é o Sol.
Dessa forma, a vista, ainda que não seja da mesma natureza do Sol recebe dele sua própria capacidade e, quando busca ver as coisas sem a presença do Sol (na escuridão) vê pouco ou quase nada.
Além disso, pelo fato da visão receber do Sol a capacidade de ver, é capaz de ver o próprio Sol (ainda que arda o olho).
Por último, o Sol não só é responsável pelo ver e ser visto, mas também pela geração, crescimento e nutrição das coisas (ideia tipicamente grega) ainda que não faça diretamente parte desse processo.
Essa relação entre Sol e visão pode ser analogamente entendida como a relação entre inteligência e Bem:
-assim como o Sol permite o ver e o ser visto, o Bem confere a verdade das coisas e permite que a inteligência conheça essa verdade;
-assim como o Sol pode ser visto, podemos também conhecer o Bem;
-assim como o Sol não é nem a visão nem a “visibilidade”, o Bem não é nem a inteligência nem a verdade;
-assim como o Sol está acima da vista e do ser visível, o Bem está acima da inteligência e da verdade;
-assim como o Sol da geração, da nutrição e do crescimento das coisas, o Bem é a causa do Ser e da essência delas, de modo que é superior tanto ao Ser quanto à essência.
Infelizmente o autor não apresenta muito mais analogias, afinal, tal como já foi dito, não parecer ter interesse de escrever sobre o Bem em si e por si.
Ao fim, Platão simplesmente apenas fala coisas sobre o Bem, mas não se preocupa em as fundamentar, quer dizer, em dar os motivos pelos quais, por exemplo, o Bem é causa do Ser e está acima dele (e olha que, em nível metafísico, falar de algo acima do Ser é forte pra caramba).
Assim, sem as Doutrinas Não Escritas simplesmente ficaríamos por aqui.
Como porem, segundo o itinerário que estamos fazendo podemos contar com elas, vamos seguir mais um pouquinho.
Parece que uma identificação do Bem com o Uno poderia explicar os porquês das afirmações de Platão, afinal, ainda que seja escassas as afirmações sobre essa identificação na Tradição Indireta, Proclo fala que o Uno de Platão é “Melius Ente” (melhor que o Ser).
O que acontece é que parece que na própria República o autor faz essa identificação, porem mais uma vez por meio de uma sutil alusão.
Apolo.jpg

Ao Fim desse discurso, Platão coloca na boca de Gláucon a seguinte frase: “Apolo! Que maravilhosa superioridade!”
Não seria errado interpretar que se trata de Platão fazendo um ato de louvor ao Sol, afinal, Apolo era um deus que tinha como carruagem o próprio Sol, porem, há algo mais a considerar.

Os pitagóricos (que Platão já havia frequentado quando escreveu a República) utilizavam justamente o nome do deus Apolo para referir-se ao Uno dele, afinal, se juntarmos a (α), que é uma partícula de negação, com polón (πολλóν), que significa muitos, temos justamente o termo “não-muitos”, ou seja, Uno. Nesse sentido, é razoável afirmar não só que Platão nos diz o nome da “Idéia do Bem”, como também que, dada a concordância entre esse nome e o testemunho da Tradição Indireta, este é uma instrumento confiável para nos aproximar das Doutrinas Não Escritas do Autor.”

Texto de José Guilherme Carvalho de Souza, Bacharel em Filosofia pela PUC-RJ

Caso você tenha alguma dúvida, crítica, pedido ou sugestão, entre em contato pelo email areafilosofica@gmail.com
Na medida do possível vamos tentar responder a cada um.
Até semana que vem e estudem com moderação!!!

Bibliografia:
-REALE, Giovanni. Platão: historia da filosofia grega e romana. São Paulo: Edições Loyola, v. III, 1993

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